De passado recente a práticas antigas: como fica hoje a Educação Infantil e o brincar?

Por Camila Zentner

“A infância não é um tempo, não é uma idade, uma coleção de memórias. A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar.”
(Mia Couto, 2015)

Primeira etapa da Educação Básica, a Educação Infantil é destinada às crianças de zero a cinco anos, e tem como responsabilidade assegurar a aprendizagem, o desenvolvimento, o direito a uma educação de qualidade social e a infância (QSN – Educação Infantil, 2019, p. 7).

De passado recente, as grandes mudanças na legislação que se refere à Educação Infantil começam em 1988 com a promulgação da Constituição Federal, que passou a estabelecer acesso às creches e pré-escolas como um dever do Estado e direito de todas as crianças brasileiras. Até então, a Educação Infantil não era considerada uma etapa da Educação Básica e, por isso, uma grande parcela da população não tinha acesso.

Do ponto de vista histórico, a educação da criança esteve sob a responsabilidade exclusiva da família durante séculos, porque era no convívio com os adultos e outras crianças que ela participava das tradições e aprendia as normas e regras da sua cultura. Na sociedade contemporânea, por sua vez, a criança tem a oportunidade de frequentar um ambiente de socialização, convivendo e aprendendo sobre sua cultura mediante diferentes interações com seus pares (Paschoal, J. D., & Machado, M. C. G., 2009, p.79).

Resgatando a história, é possível perceber as mudanças de paradigmas ao longo das décadas, bem como os avanços conquistados após a luta de diversos movimentos sociais, em especial das mulheres. Seu início assistencialista, que seguiu posteriormente para uma educação compensatória para as crianças das classes menos favorecidas e depois para a criação dos primeiros parques infantis, entre outras passagens, revela o pensamento de cada época sobre a criança e o espaço que ela ocupava na sociedade, repleto de marcas e discursos, até chegar na Educação Infantil que é conhecida hoje.

A concepção de infância foi essencial para esta nova forma de olhar a educação das crianças pequenas, sobre isso nos esclarece a professora Márcia Gobbi:

Sabe-se que a infância é uma construção social e histórica. Neste período da vida, meninos e meninas são considerados sujeitos históricos e de direitos, o que constitui formas de estar no mundo manifestas nas relações e práticas diárias por elas vivenciadas, experimentando a cada instante suas brincadeiras, invenções, fantasias, desejos que lhes permitem construir sentidos e culturas das quais fazem parte permitindo-nos afirmar que são ativos, capazes, com saberes diversos, que se manifestam com riqueza demonstrando suas capacidades de compreender e expressar o mundo (Gobbi, 2010, p. 1).

Nessa concepção, o brincar surge como a atividade principal que a criança aprende, sendo ele, junto as interações, um dos eixos norteadores das propostas pedagógicas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil (DCNEI), retomados na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e em nossa Proposta Curricular Quadro de Saberes Necessários – QSN (2019):

As crianças representam o mundo mediante um processo ativo na invenção e na produção de novos significados, saberes e práticas por meio do brincar, que é de suma relevância para o processo psicológico de aprendizagem e desenvolvimento. As crianças vivenciam no ato de brincar experiências em seus contextos socioculturais. Nessa perspectiva, por meio da brincadeira, que envolve interação das crianças em diferentes papéis, as relações sociais que esses papéis criam começam a ser desvendadas pelas crianças. À medida que constroem novos conhecimentos, elas ampliam sua capacidade de reflexão e ação sobre si, os sujeitos e os objetos com os quais se relacionam.  (QSN – Educação Infantil, 2019, p. 8 e 9)

O brincar, portanto, precisa estar no centro do planejamento das ações no cotidiano da Educação Infantil. No entanto, diferente do que muitas vezes circula entre o senso comum, o brincar não acontece somente quando a educadora propõe brincadeiras e jogos, as tais “propostas dirigidas”, pelo contrário, é no brincar livre que se encontra a grande potência desse eixo norteador.

Nessa perspectiva, pode surgir o questionamento: “Enquanto a criança brinca, a educadora faz o quê?”. Cabe a educadora da primeira infância organizar os espaços para que esse brincar aconteça, planejando os saberes e aprendizagens esperados para as crianças naquele momento, selecionando os materiais e a forma que serão disponibilizados para alcançar seus objetivos.

Durante a brincadeira, a educadora deve observar as crianças e aproveitar para registrar tudo que é relevante para a avaliação e o planejamento das próximas experiências. Interfere-se o mínimo possível, não sendo necessário explicar qual o jeito certo de brincar, até porque ele não existe, porém é preciso estar aberta aos convites que possam surgir para um brincar junto com eles.

É importante também não perder de vista que o brincar livre precisa de tempo, não pode ser programado para que ocorra em quinze ou vinte minutos. Tentar resgatar o brincar da infância e lembrar do quanto se perde a noção do tempo quando se está brincando por inteiro, pode ser um caminho para a educadora se reconectar ao brincar em sua essência.

Organizar cantinhos diferentes para o brincar faz parte das ações da educadora, porém não há que se determinar em quais deles a criança deve ficar, nem rodízios para que ela passe por todos. Deixar que escolham e se desejam ou não permanecer no mesmo canto faz parte do processo.

Não ficar somente dentro da sala, explorar os diferentes espaços da escola e, sempre que possível, ocupar os ambientes naturais que tem disponível: o parque, jardim, bosque ou até mesmo uma praça próxima à escola, e caso não consiga, levar elementos naturais para a brincadeira: folhas secas, gravetos, pedrinhas, ervas etc. Há muito o que se fazer nas escolas da infância, contudo, não mais como se fazia em tempos atrás.

Sobre isso, Ana Carol Thomé do Ser criança é natural escreve:

As crianças precisam explorar, experimentar e sentir o mundo desde o nascimento. Nós, humanos, somos seres que aprendemos sem parar, já nascemos sabendo aprender, é característica da nossa espécie. Não precisamos dirigir ou interferir nas atividades das crianças o tempo todo, pois, assim, bloqueamos seu movimento natural de buscar o que aprender e suas próprias escolhas. Podemos estar próximos, brincar perto ou simplesmente observarmos atentos seus processos de criação. […] O adulto muitas vezes não percebe que, enquanto a criança está envolvida em seu brincar livre, ela utiliza todos os seus sentidos. Quando isso acontece, percebemos um estado de presença completo. Se você é adulto e está acompanhando uma criança que brinca ao ar livre, sugerimos que a observe enquanto a brincadeira acontece.
(Thomé, 2022, p. 5-6)  

Que a Educação Infantil com toda sua história e potência possa extrapolar as barreiras que ainda hoje impedem que as crianças vivam a infância em toda sua plenitude, que seja para todas as crianças um tempo de felicidade, amizades, histórias, curiosidade, descobertas, encantamento e muito brincar!

 

Referências:

COUTO, Mia. Tradutor de chuvasPortugal. Ed Caminho, 2015.

GOBBI, Márcia. Múltiplas linguagens de meninos e meninas e a educação infantil. In: Anais do I Seminário Nacional: Currículo em Movimento – perspectivas atuais. Belo Horizonte, novembro, 2010.

GUARULHOS. Secretaria de Educação de Guarulhos. Proposta Curricular – Quadro de Saberes Necessários – QSN. Guarulhos, 2019. Disponível em: http://portaleducacao.guarulhos.sp.gov.br/siseduc/portal/site/listar/categoria/8/. Acesso em: 31 de maio de 2023.

PASCHOAL, J. D., & Machado, M. C. G. (1). A história da educação infantil no Brasil: avanços, retrocessos e desafios dessa modalidade educacional. Revista HISTEDBR On-Line, 9(33), 78-95. https://doi.org/10.20396/rho.v9i33.8639555 Acesso em: 15/05/2020

THOMÉ, A. C (org.). Brincar com e na natureza: Guia para começar e aprofundar a relação entre criança e natureza. (e-book) Ser criança é natural. São Paulo, 2022.

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